
Ainda ontem
Muitas vezes vamos lá atrás puxar argumentos, vamos à procura de respostas. E uma pergunta feita no presente não terá uma resposta do passado. Encontraremos sempre outras palavras. Somos reféns do tempo, mas não podemos ser reféns do passado.
Os alemães utilizam uma expressão extraordinária que significa "espírito do tempo": Zeitgeist. Hegel acreditava que a arte reflectia a cultura da época em que foi feita, sendo o artista produto da sua época. Acreditava que, no mundo moderno, não poderia ser recriada a arte clássica. Esta é, talvez, uma visão macroscópica de uma realidade muito concreta. Mas podemos, se quisermos, levar o "espírito do tempo" para o detalhe. Decisões que tomámos dada a altura, palavras que proferimos naquele contexto concreto do passado. Vozes que levantámos naquela tarde negra porque assim também nos encontrávamos. Na retrospectiva todos somos génios.
Passamos o tempo a dizer: "se eu soubesse o que sei hoje" e aí habitamos. Não entendemos que, querendo algo diferente na altura, se lá voltássemos agora, quereríamos outro lugar também. Quereríamos sempre algo diferente porque nunca ali estivemos, no presente. E a prova disso mesmo é a quantidade de vezes que, em silêncio ou em diálogo, vamos ao "ainda ontem".
Ainda ontem bebíamos sem dores na manhã seguinte. Ainda ontem nos deixávamos dormir. Ainda ontem não nos preocupávamos. Ainda ontem líamos o verso das caixas de cereais. Ainda ontem as coisas pareciam durar.
Porque o futuro se desconhece, vamos até lá atrás. O passado é o presente desarrumado. Para os nostálgicos, tanto pode ser um terreno pantanoso como um o jardim de relva cuidada, onde vão descalços. É preciso olhar o tempo com distância, mas também é urgente senti-lo próximo, como quem abraça um filho. Porque pode dar-se o caso de tudo ficar para lá da linha. E o pior será sempre dizer: "ainda ontem estávamos na mesma."