
Ultimamente venho sempre aqui dar. Depois da conversa que tive na Rádio Comercial, muitas foram as mensagens de ouvintes, pessoas próximas e outras completamente desconhecidas que me agradeceram falar-se do espanto. O espanto, o assombro das coisas, o derrubar no inesperado, o impacto com aquilo que, na vida, é maravilhoso. Espantem-se os que olham, pasmem-se os que ficam. Nunca me cansarei de escrever sobre isto. É o grande propósito de uma viagem. É o grande propósito da vida.
São tantas as coisas que espantam. São tantas as pessoas que se permitem. No entanto e no óbvio, ninguém se espanta com o mesmo. Ouvintes perguntaram o que me espanta. Tentarei deixar aqui o máximo que a memória conseguir alcançar, como ...
... uma manhã que começa devagar, onde os pardais são quem comanda o tempo, o barulho do vento que percorre as folhas dos carvalhos, o sabor infantil dos capuchos no jardim das Furnas nos Açores, entrar num mercado de rua, ouvir os que chamam, levar a paprika ao nariz, provar tâmaras, abrir uma ementa de um restaurante, dar conta das horas que passaram numa conversa que já vai longa, e beleza trágica de uma noite movida a relâmpagos, o entusiasmo de planear um almoço ou de ver o Sol a ir-se num instante. A capacidade de sermos nós, agora mais velhos, a olhar pelos nossos pais, uma troca de olhares com ela e um sorriso como a mais avassaladora das consequências, uma chave que dá a volta e um avião que descola, uma biblioteca silenciosa, um barco que espera nas águas calmas de um porto que não se conhece, um nome estranho que se descobre, uma língua que se aprende, a alegria do recepcionista, a mãe que espera os filhos à porta da escola, uma travessa que chega finalmente à mesa, abrir a porta de um quarto de hotel, abrir o fecho de uma tenda e olhar para cima, em noites descobertas, todas as raças e a sua história, gente que se compreende por gestos, a cor de um jacarandá, a terra batida depois da tempestade, as pessoas que pedem chuva sabendo que lidam também com a lama, o pó de uma estante, a rapidez de um beija-flor, a sujidade de uma infância, feridas saradas, a quietude da madrugada, alguém que coloca na mesa a ideia de um digestivo antes de ir embora, alguém que coloca na mesa a ideia de um segundo antes de pagar, alguém que coloca na mesa a ideia de pagar tudo, mas só se bebermos mais um. A demora de uma conversa, as pessoas das quais sei o nome e tudo o que até hoje me deixou a pele arrepiada.
Ficaria aqui até ao fim dos dias, o que também é espantoso.